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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O estrume e a porcaria





            A globalização está transformando o Brasil num fornecedor mundial de carnes. Entre elas está a carne de porco. Ela vem de criações intensivas. Aproveitam a abundância de soja e milho que a modernização da agricultura brasileira proporciona. Ser intensivo, porém, não cria só economias de escala, mas também faz aparecer uma concentração de problemas. No caso das granjas de suínos – que garantem o nosso presunto e lingüiça de cada dia – o problema tem nome: uma grande montanha de esterco.

            Em Santa Catarina, há cidades no oeste do Estado nas quais a água é intragável. A poluição é concentrada e atinge os rios. Mas calma leitor, antes de atirar pedras, lembro-lhe que essas pequenas cidades são beneficiadas pelos empregos, pela renda e pelos impostos que movimentam as economias locais. Há grandes áreas com florestas mantidas em pé nessa região devido à renda per capita satisfatória que inibe a dilapidação de matas em busca de outros meios de sustento. Ademais o IDH alcançado por essas cidades é respeitável.

            Como então equacionar o problema? Como produzir porcos sem poluir os rios e o lençol freático? Típico caso em que são necessárias políticas públicas para regular o conflito entre duas preocupações legítimas: desenvolvimento econômico e qualidade ambiental. Nesse caso, a regulação esteve ausente por muito tempo: não havia necessidade alguma de licenciamento para se tocar uma granja, o que seria uma etapa inicial necessária a qualquer controle.

            A situação parece estar evoluindo. Alguns estados importantes já possuem um procedimento licenciatório para produção de porcos. Estudo do Dr. Júlio Palhares , pesquisador da Embrapa, mostra, porém, que Estados importantes como São Paulo, Mato Grosso e Goiás não começaram a licenciar a atividade. É um sinal de alerta. Esse interessante estudo mostra também as tendências para equalizar o conflito e criar bases para procedimentos ambientais para a instalação de granjas.

            Uma das medidas interessantes para amenizar o problema é a instalação de biodigestores que produzem gás metano. Biocombustível à base de esterco. Muitas granjas já instalaram o sistema e usam a energia para seu próprio consumo. O que sobra da reação pode ser utilizado como adubo na produção de grãos e beneficiar a própria região. Parece uma nova versão do Mad Max onde o suinocultor é o moderno Master Blaster!




            Embora interessante, útil e muito alardeada pela imprensa, a instalação de biodigestores não é suficiente para conter os efeitos da aglomeração de porcos. Somente a regulação devida do tema pode manter a indústria de suínos sustentável ao longo do tempo. Como alerta o estudo do Dr. Palhares, se não houver normatização a competitividade dessa cadeia produtiva pode estar seriamente ameaçada. Sem dúvida a compatibilização de políticas públicas, problemas ambientais podem transformar a agropecuária numa grande porcaria!

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sisbov: um tiro na rastreabilidade?

  
  
       
  
    Quando estourou a crise da vaca louca os consumidores europeus ficaram assustados. Costumavam confiar no seu sistema de produção. Depois da crise exigiram rastreabilidade. Queriam saber de onde vinha seu alimento. As autoridades sanitárias da União Européia aproveitaram o momento - uma janela de oportunidade, como dizia Kingdon - e implementaram a rastreabilidade para monitarar e evitar a dispersão de epidemias em animais.


    No Brasil, os técnicos da inspeção veterinária desconfiaram que as exigências de rastreabilidade européias chegariam às carnes importadas, inclusive as brasileiras. No momento em que a vaca louca explodiu nos EUA, aquele país que era o maior exportador perdeu muitas vendas e assumimos seu lugar. Precisávamos garantir o aumento das vendas. Além disso, havia veterinários experientes que sabiam que haviamos importado muito gado europeu (matrizes e reprodutores), e seria importante saber onde atuar se a vaca louca se manifestasse nestes animais. Nesse contexto foi criado o Sisbov: o sistema de rastreabilidade do boi brasileiro.
     
      Entretanto, as fazendas de bovinos de corte no Brasil não servem só para produzir carne. Quem nunca tinha ouvido falar que boi servia para lavar dinheiro e acobertar operações duvidosas pôde ter uma idéia de seu potencial no chamado Renangate. Como há grandes diferenças de produtividade, muitos pecuaristas também se aproveitam dessa brecha para pagar menos imposto, declarando menos vendas do que as efetivamente realizadas. Ao contrário da produção de suínos e aves, nos bois tem muita gente que a usa a atividade para outros fins, se não ilícitos, no mínimo duvidosos.
     
    Sonegadores e pessoas ligadas a lavagem de dinheiro começaram a se assustar quando perceberam que o sisbov logo seria universal e obrigatório para todos. Ora, se todos os bois tivessem um brinco único, rastreável desde o nascimento até o abate, a Receita poderia, com o tempo, usar tal base de dados para prevenir sonegação, e a Polícia, o Ministério Público, e Coaf poderiam investigar lavagem de dinheiro. Entre outros conflitos, se formava uma incompatibilidade entre o acesso ao mercado de carne europeu e defesa veterinária versus o uso de gado para encobrir ilícitos.
     
     Na produção de bovinos de corte no Brasil a maior parte da carne vai para o mercado nacional. Anos atrás a exportação era irrelevante, hoje embora respeitável não chega a rivalizar com o consumo interno. O peso dos interesses se dá aí: quem sonega ou lava dinheiro tinha muito a perder; os que produziam para exportação eram poucos, e tinham outros mercados além da Europa. Estava selada a silenciosa frente contra o Sisbov. Gente preocupada com o que estava em jogo começou uma discreta campanha para desacreditar o sistema. A Abiec, que representa os exportadores, ou não percebeu essa campanha ou não teve força suficiente para fazer frente a ela. 
     
     Verdade é que implantar um modelo de rastreabilidade como o Sisbov é uma tarefa complexa. Foram necessárias muitas mudanças. Algumas sugeridas por técnicos para refinar o controle. Outras pressionadas pelo lado de fora para afrouxar as regras. Nesse vai e vêm, equipe de auditoria da União Européia tinha aceito o modelo proposto. Quando voltaram noutra vez perceberam que ele tinha deixado de ser focado na sanidade, e resolveram então apertar o cerco. Começaram as crises. Nesse panorama o lobby anti-Sisbov pôde usar a instabilidade para colocar os pecuaristas contra o sistema. Disseram que as exigências da UE eram descabidas e que rastrear era caro.
      
       Alguns parlamentares da bancada ruralista tiveram papel importante em descaracterizar o Sisbov. Com certeza parte de seus apoiadores insistiram para obstar a rastreabilidade, outra parte -  que estava mais distante do debate - comprou a versão daqueles que seriam prejudicados, algo que poderia ser explicado pela chamada lei de ferro das oligarquias de Michels. O evento crucial foi o chamado "embargo" da União Européia que se deu quando inspetores europeus perceberam que as flexibilizações tinham ido longe demais. A partir daí, parlamentares tiveram a brecha que precisavam para legislar e enterrar a rastreabilidade, ironicamente agravando os problemas apontados pela UE.
      
     Oficialmente, com a nova Lei 12.097, de 2009, o sisbov foi aperfeiçoado. Porém, a análise atenta do documento por técnicos do setor leva a concluir que a rastreabilidade foi enterrada de vez. Até marca a fogo está valendo agora no lugar dos brincos com chip eletrônico. E só será conhecido o paradeiro do boi nos seus últimos 90 dias de vida, isso numa média de vida de 3 anos. Infelizmente o corpo de veterinários responsável pela rastreabilidade não poderá fazer com muito com um arcabouço legal destes. Parece ser o tiro de misercórdia na rastreabilidade: o abate do sisbov. Esperemos a nova visita de inspetores europeus: estamos curiosos para saber o que farão os grandes frigoríficos com os cortes traseiros depois da provável suspensão que nos ronda. Melhor teria sido se os pecuaristas competentes - que devem ser a maioria silenciosa - tivessem se unido contra esse retrocesso.