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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Crédito Rural: uma longa transição

  
           

Agricultura é uma atividade de baixa rentabilidade. Não quer dizer que não possa ser um bom negócio, mas para se tocar uma safra se emprega muito mais recursos do que normalmente o agricultor tem disponível e com liquidez. O segredo está na escala. Neste contexto o modelo de modernização adotado no Brasil, responsável pelo sucesso na produção e exportação, é um grande demandante de crédito seja na forma de custeio seja na forma de apoio aos investimentos de longo prazo. Ou seja, crédito rural é um tema chave para o desenvolvimento agropecuário do Brasil. Neste momento estamos no meio para o final de uma longa transição.
           
            O sistema que está em transformação teve seu início junto com o governo militar pós-64. Foi um dos temas tratados pelas reformas econômicas de Roberto Campos e Octávio Bulhões. Embora aqueles economistas tivessem grande simpatia por regimes amigáveis ao capital privado e defendessem idéiais liberais, como tecnocratas responsáveis sabiam a conjuntura que enfretavam: poucos recursos oriundos de capitalistas que se dispunham a emprestar para agricultores. O governo não intervir seria incompatível com o projeto de Brasil que os militares iriam desenvolver, especialmente após a decisão de transformar o país em “potência” e aumentar sua autonomia. E como sabemos nos anos 70 a ordem era alavancar a modernização e o avanço das fronteiras agrícolas.

Embora tenha apresentado resultados vistosos como a conquista do cerrado e a multiplicação da produção, o sistema demandava muitos recursos. Já no início dos anos 80, com o prenúncio da crise fiscal que se avizinhava, o Estado passou a ter problemas em encontrar fundos para a manutenção deste modelo. Ademais, um arcabouço tão centrado no Estado deu espaço a demandas clientelistas e a disseminação de fraudes sistêmicas, numa corrida para a apropriação dos recursos federais, levando a escândalos como o caso da mandioca e as falcatruas contra o seguro do Proagro. O modelo agonizava junto com a débaclê do Estado brasileiro dos anos 80.   

No bojo das reformas neoliberais dos anos 90 havia uma clara decisão de que o governo não seria mais capaz de financiar a agricultura como fora outrora. Numa conjuntura de abertura econômica e competição, se desejava maior participação de capitais privados no crédito rural. Não foi o enterro do modelo anterior, mas sobre suas bases começava uma mudança significativa, e a principal estrela que nascia era a CPR (Cédula do Produto Rural), cujo fundamento era a segurança jurídica para o emprestador. Iniciou-se o debate para enterrar o seguro estatal Proagro e se criar um novo modelo, com apoio governamental, mas com responsabilidades para as seguradoras privadas. O Banco do Brasil continou sendo o principal agente na ponta do sistema, mas agora além do custeio tradicional oferecia emissão de CPR como forma de complementar no mercado de capitais o restante dos recursos necessários ao produtor.

Os anos 90 foram verdadeiramente complexos. A âncora verde, ou seja, o repasse de ganhos de produtividade dos agricultores para os consumidores no ambiente do plano real, e a disparidade de reajustes das dívidas por conta dos planos heterodoxos dos anos 80, somada a alta de juros levada a cabo pelas equipes econômicas conservadoras levou a uma explosão no acumulo de dívidas. Se o governo da época era cioso de se livrar de “esqueletos” acabou criando um dos maiores que já existiu: a dívida do crédito rural. Ao mesmo tempo, começava a se estruturar um modelo alternativo voltado aos pequenos agricultores que tinham dificuldades em conseguir recursos nos bancos: o PRONAF.

O cenário atual é o de avanço das reformas, inclusive do sistema de armazenagem de grãos e custódia, para que haja garantias jurídicas aos emprestadores. O seguro rural começa a deslanchar com subsídios direcionados, o que dá garantias ao crédito. A participação de capitais vai crescendo, e o governo começa a ensaiar diminuir o percentual dos depósitos a vista que os bancos são obrigados a direcionar ao crédito rural. Os programas de ressecuritização de dívidas, mesmo com amargor dos produtores, vai solucionando a questão das dívidas impagáveis. O PRONAF se consolidou como política pública de Estado, não havendo questionamento de seu papel. Os investimentos privados fluem para financiar a agropecuária brasileira, e participar dos lucros. A transição vai se complentando, de forma lenta, gradual e segura - principalmente segura. Em breve precisaremos de um reforma das leis e decretos já desgastados. O modelo já é outro, o arcabouço ainda não.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Eleições e as demandas da agricultura





         É na época das eleições que os políticos ficam mais abertos às demandas dos eleitores e dos colaboradores de suas campanhas. Nada mais natural. Assim, os segmentos organizados da sociedade buscam apoio para suas propostas, tentando emplacar as agendas de seu setor, numa competição pela atenção dos candidatos a cargos públicos. Num ambiente assim é muito fácil ser ouvido, mas difícil ser verdadeiramente escutado e mais ainda ser lembrado após as eleições sobre as ações pactuadas.

      O agronegócio brasileiro historicamente não conta com uma interlocução organizada e representativa junto aos governos.  Ao contrário da indústria que se estruturou na FIESP e na CNI conseguindo influenciar as decisões de Estado, a agricultura montava coalizões ad-hoc em tempos de crise sem uma interlocução de agenda na implementação de suas políticas. A suposta força da bancada ruralista é muito mais um mito do que a realidade comprovável da obediência partidária. Não há dúvidas que os avanços da Confederação Nacional da Agricultura - CNA conseguiram dar a ela maior legitimidade. Entretanto ainda há temores de uso eleitoral de suas estruturas, ademais de representar tão somente o setor primário da cadeia do agronegócio, conseguindo respeitável expressão de bases regionais mas pouca força no lobby profissional.

           A criação da Associação Brasileira de Agribusiness - ABAG, por outro lado, foi uma significativa mudança para o setor. Além de representar os interesses dos agricultores e pecuaristas, busca integrar toda os demais participantes do agronegócio, sejam eles atuantes antes da porteira ou após a porteira. As demandas da ABAG são, portanto, mais sintéticas e de maior peso. E justamente um dos segredos da atuação de representação dos interesses antes das eleições é poder apresentar uma agenda que tenha um espectro de abrangência ampla, que sensibilize os candidatos.

       Numa notável evolução a ABAG apresentou este ano uma proposta de agenda aos presidenciáveis, de qualidade indiscutível. Devidamente estruturada, com coerência interna, e elencada em temas que abrangem grande leque de beneficiários, foca em: garantia de renda, infraestrutura e logística, comércio exterior, inovação, defesa agropecuária e institucionalidade do poder público. Em cada um desses eixos se explicitou as ações prioritárias com proposta de metas e com formas de atingi-las. Fugiu ao tradicional pork-barrel de demandas paroquialistas que manchou as demandas dos representantes da agricultura por décadas. Explicitou os benefícios que serão entregues a sociedade como um todo, caso as propostas sejam implementadas. Uma aula de representação de interesses.

         Obviamente a proposta pode ainda ser aperfeiçoada. Sua profunda densidade pode compremeter o entendimento de todos os seus pontos imediatamente, sendo um pouco mais extenso do que poderia se esperar de um documento pré-eleitoral. De qualquer forma é uma avanço considerável que recomendo leitura (clique aqui). Estas proposições são um passo fundamental no sentido de melhorar a comunicação do agronegócio com a sociedade. É uma necessidade urgente de um setor que contribui para o desenvolvimento do país, gerando emprego, renda e divisas e transbordando demanda para outros setores como transportes, máquinas, serviços, indústria química etc. 

         Quando eu morava na Holanda, as estufas que produziam legumes, frutas e flores organizavam um dia por ano de visitas onde a sociedade podia conhecer melhor como funciona a produção agrícola do país, entrando e vendo com seus próprios olhos. Lá se falava do respeito ao meio-ambiente (e na Europa não existe nem reserva legal e nem Área de Preservação Permanente como temos aqui) e da responsabilidade social como um todo. O Brasil está encontrando sua agenda para comunicar melhor as realizações e demandas do agronegócio. Não só a ABAG, mas também outras instituições de representatividade como ABIOVE e APROSOJA que estão tendo sucesso na empreitada de comunicação ao grande público. Tal processo só pode contribuir para o aperfeiçoamento da elaboração e implementação das políticas públicas para o agronegócio, gerando benefícios para toda a sociedade. A clareza e a transparência só somam para o avanço.


quarta-feira, 28 de abril de 2010

Transgênicos: áreas de escape ou tragédia dos comuns?






     A área plantada com lavouras transgênicas tem crescido constantemente nas últimas décadas. Motivos não faltam para o agricultor. Entre os principais estão os menores custos e a praticidade no manejo. No caso da soja resistente ao glifosato, trata-se de substituir herbicidas caros por um herbicida barato - com muitas versões genéricas - e simplificar e reduzir as aplicações. O custo mais alto da semente transgênica, em geral, compensa pela economia de produtos químicos. No caso do algodão e milho Bt tratam-se de plantas que produzem substâncias que são indigestíveis para os insetos, o que leva a uma economia brutal de inseticidas. 
    
     No início, o grande desafio para o avanço no uso das plantas geneticamente modificadas era a aversão a nova tecnologia que era difundida em larga escala na mídia pelos ativistas de ONGs. Alegava-se suspostos riscos ambientais e de concentração de mercado. Os primeiros estão sendo cada vez mais desmentidos por testes científicos, já o segundo risco, embora relevante, não está relacionado com a introdução da técnica de DNA recombinante e sim com o processo de concentração mundial na área de empresas sementeiras, que é anterior a massificação dos transgênicos. Passadas as contestações iniciais de cunho ideológico, emerge o desafio técnico a ser enfrentado: o fenômeno da resistência.
     
    Os sistemas biológicos, como as lavouras, são complexos e têm alto poder de resiliência, isto é, de resistir e de se adaptar a mudanças drásticas. No caso de uso constante de soja resistente a um determinado herbicida há exposição ano após ano das plantas daninhas daquele campo a um mesmo princípio ativo. Há probabilidade de que com o passar dos anos, somente as daninhas com genes resistentes a tal herbicida sobrevivam e por fim sua população seja predominante. Nessa situação a planta transgênica perderia sua eficiência e o agricultor seria obrigado a voltar para as variedades antigas, o que implicaria maiores custos. Com as plantas Bt ocorre algo semelhante, podendo haver - com o passar dos anos - seleção de insetos que não tenham sensibilidade ao princípio, e haja então necessidade de voltar a aplicar inseticidas.
    
    Há formas de manejo para evitar que o fenômeno da resistência ocorra. Seriam as chamadas áreas de escape para o caso das plantas Bt (que garantiria a reprodução de insetos não resistentes), e a rotação programada para a soja RR (que evitaria a super-exposição das daninhas a um mesmo herbicida). O que elas tem em comum é que embora o agricultor arque com o custo de ter uma área de escape ou rotação, todos os seus vizinhos se beneficiam com a medida. Há uma tentação para que um agricultor não faça sua parte, contando com que o vizinho fará. Embora não seja extamente isso, se parece com o que na economia clássica é chamado de tragédia dos comuns.

    Não é impossível administrar uma situação como estas. Porém é necessária coordenação. Parece ser uma tarefa geograficamente muito pulverizada e com interessados extremamente bem definidos para ser exercida diretamente pelo Estado. Em regiões com sindicatos rurais, cooperativas e fundações de pesquisa estruturados é possível que tais organizações se prestem a administrar a aplicação de áreas de escape e rotação para transgênicos. A assistência da defesa agropecuária e das instituições de pesquisa é crucial como consultoria técnica, mas não na execução direta da política. A conformação de mecanismos de governança em rede tem aplicação promissora para este problema, como foi no caso do consórcio anti-ferrugem.

    Confesso que ainda não li, mas acredito que o livro da cientista política Elinor Ostrom, prêmio Nobel de Economia em 2009 tenha idéias interessantes sobre situações semelhantes. Trata-se de obra a respeito da governança econômica dos chamados bens comuns.  Deve haver princípios que se apliquem na questão da manutenção de daninhas e pragas que sejam suscetíveis aos princípios ativos relacionados com os transgênicos. Se as populações de pragas resistentes se tornarem a maioria no campo, o prejuízo será de todos. A carona do free-rider vai durar pouco. É preciso prevenir. Coordenação é fundamental.

    

     

sexta-feira, 19 de março de 2010

Genéricos na agricultura: quem poderia ser contra?

 



            As lavouras que alimentam a população brasileira e garantem nossos dólares nas exportações têm 5 componentes principais de custo: fertilizantes, terra, máquinas, mão-de-obra e defensivos. Estes últimos, também chamados de agrotóxicos, são produtos de alto valor agregado. Custam muito caro, embora seu retorno seja atestado pelos produtores, que quando investem nessa tecnologia de controle químico de doenças e pragas costumam ter resultados positivos, com safras maiores.

            Mas como são inventados esses fungicidas, herbicidas e inseticidas? Antes da produção em escala, há grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Hoje, poucas empresas no mundo têm recursos e escala para criar novas moléculas. A maioria delas é européia, algumas americanas e japonesas. Syngenta, Bayer, Basf, Dow, Monsanto e Du Pont são os conglomerados que em laboratórios na Suíça ou Alemanha sintetizam princípios e testam em plântulas e em insetos para descobrir seu potencial. Uma vez identificado, trabalham em testes em campo ao redor do mundo, nas estações experimentais dessas empresas. No Brasil, essas estações estão perto de Campinas, SP, na região de Artur Nogueira e Holambra.

            Entretanto, empresas só fazem investimentos com perspectiva de retorno. A garantia está na patente do produto que boa parte dos países do mundo concede, por tempo limitado a essas inovações. Uma vez vencida a patente, outras empresas que conseguirem sintetizar o defensivo, poderão vendê-lo. No Brasil, empresas de genéricos como a Milênia, ou aquelas filiadas à AENDA entram no mercado. E com a concorrência, os preços desabam. Ganha o produtor, ganha a competitividade do nosso agronegócio. Perdem as empresas que dependiam da patente. E é aí que começa a ser configurada uma Coalizão de Defesa (Advocacy Coalition Framework – ACF) para barrar os defensivos genéricos.

            Defensivos de patente livre (genéricos) costumam ser antigos. Muitos possuem maior potencial de impacto ambiental do que as moléculas mais novas. Não é regra, mas costuma acontecer. Nesse ponto é que as entidades ambientalistas e a burocracia do licenciamento ambiental entram em cena, pretendendo que não se renove as autorizações de uso de produtos mais antigos, que são justamente os que podem ser genéricos. Ao mesmo tempo, como as grandes companhias químicas não querem concorrentes para seus produtos novos (patenteados), que possuem preços até 10 vezes maior que os genéricos, elas passam a pressionar nos bastidores para que os produtos que antes elas produziam sejam banidos. Antes produziam relatórios científicos mostrando a segurança do produto, quando perdem a patente aparecem estudos sobre possíveis efeitos colaterais.

            Nesse sentido alguns fóruns estão sendo escolhidos pela Coalização de Defesa contra os defensivos genéricos para sua atuação. No Brasil, ANVISA e Ministério do Meio Ambiente, que precisam dar anuência a esses produtos, são pressionados a cassarem as autorizações dos genéricos. Já a nível mundial, as convenções de Rotterdam e de Estocolmo sobre produtos químicos é o local no qual se tenta proibir a globalmente os agrotóxicos de patente livre. Empresas químicas em países emergentes como Índia e China, e mesmo no Brasil que se tornaram competentes em produzir tais produtos são ameaçadas pela proibição de seu comércio. Por outro lado, as grandes empresas européias se sentem protegidas, pois já não são mais competitivas e esperam ansiosas que a proibição lhes garanta mercado para os modernos produtos patenteados que custarão muito mais.

            No meio dessa atuação uma preocupação se torna relevante: como fica o agricultor do Brasil? Como fica a competitividade do nosso agronegócio? Se o banimento dos produtos de patente livre for avançando no ritmo em que está, boa parte da riqueza gerada pela nossa lavoura será cada vez mais apropriada pelos royalties enviados às grandes multinacionais que produzem os tais defensivos de nova geração, caros e patenteados. Quem ganha com isso? O debate é necessário.

domingo, 14 de março de 2010

De hedgers a especuladores: como quebrar uma empresa





     A Sadia praticamente quebrou. Só não foi a falência de fato por conta dos ajustes de emergência para conseguir fôlego até a fusão com a Perdigão. Fusão, nesse caso, foi um nome elegante para a compra da empresa pela rival. Mas como a tradicional empresa de Concórdia, em Santa Catarina, outrora poderosa e estável, entrou numa situação dessas? Porque o legado do empresário Attilio Fontana quase esfacelou da noite para o dia? Podemos resumir em duas palavras: especulação financeira. 

     Como muitas empresas e empresários do setor produtivo, a Sadia diante de instabilidades de câmbio, de preços de matérias primas e dos produtos finais buscou proteção, ou hedge - em linguagem técnica -, nos mercados futuros e de opções. Nesses mercados de derivativos é possível de antemão travar um preço que se considere adequado, para evitar oscilações futuras que possam causar prejuízos graves. No caso do câmbio se os custos de uma empresa exportadora são em reais, e seu produto será vendido em dólar, ela pode fixar o câmbio futuro que se prevê num dia. Se o real se fortalecer, ela não perde, e se enfraquecer ela deixa de ganhar essa diferença. É como se fosse um seguro de preço.

     Acontece que, quem entra no mercado futuro para se proteger de oscilações, ou seja, como hedger, quando passa a conhecer o mercado a fundo se sente tentado a ser um especulador - aquele que aposta e não tem produto para garantir as operações, e busca lucrar com seu feeling ou conhecimento dos fundamentos do mercado. Esse foi o caso dos executivos financeiros da Sadia... para quem se interessa pelo caso recomendo a leitura da reportagem Setembro Negro, da edição 38, da Revista Piaui. Produzida com o esmero costumeiro daquela publicação, elucida numa narrativa empolgante a trágica situação da empresa em seus dias de agonia.

     Embora tenha citado o caso da Sadia, poderia enumerar uma série de outros eventos na mesma linha. Começa na busca de proteção ao risco e termina com a busca de ganho financeiro via aumento da exposição ao risco Quando estava na graduação, ouviamos falar muito no caso em que executivos da Coopersucar - na época grande exportadora de açúcar de suas cooperadas -, empolgados com o sucesso do uso de mercados futuros para se proteger das oscilações da commodity, resolveram então fazer caixa lançando opções. Como o mercado estava em baixa, lançaram em valores altos, acreditando que nunca seriam exercidas, e que os recursos angariados seriam recursos ganhos. Como o mercado mudou antes do exercício, e os preços dispararam, o prejuízo da cooperativa foi grande. 

    Mais de perto, tive a experiência num breve estágio, proporcionado pelo ilustre Prof. Pedro Marques da ESALQ, em uma corretora de valores em São Paulo. No atendimento da mesa de derivativos agrícolas havia clientes que sendo pecuaristas ou cafeicultores entraram para o mercado em busca de proteção... com o tempo e com o sucesso de suas tacadas foram cada vez mais fazendo operações de especulação. Ora, se busco me proteger e acerto o movimento do mercado, porque não usar esse conhecimento e ganhar dinheiro fácil, pensam eles. Como a corretora e os corretores ganham comissão não é de se esperar que eles busquem orientar sobre os possíveis riscos.

     Ao contrário do senso comum, especuladores são importantes para o mercado. Como assumem riscos em busca de lucros, dão liquidez ao mercado. E quem busca proteção - o hedger - uma vez com o preço travado não precisaria se o preocupar. O problema está quando o hedger, o produtor rural ou empresa do setor produtivo passa de hedger a especulador sem se dar conta que está trocando de lado. Assume um risco que não tem consciência. Para um produtor individual de café ou de boi, pode ser fatal, levando suas finanças à desgraça, mas ainda assim seria um opção individual. Já no caso de empresas de capital aberto e cooperativa, é o futuro dos acionistas, do integrados e cooperados que está em jogo.

      O final do caso Sadia embora traumático - por causa do brio corporativo - para seus empregados, poderia ter sido realmente trágico. Felizmente, a criação da Brasil Foods não criou grandes prejuízos a integrados e trabalhadores. Nesses tempos de revisão da confiança cega na auto-regulação fica a lição da importância do papel da supervisão da CVM e dos conselhos da empresas e das cooperativas como órgãos de governança. Executivos maximizam seus lucros, são rent-seekers, cabe então aos demais stakeholders - especialmente acionistas - e ao Estado supervisionar que para o risco das operações de uma corporação seja mantido dentro do aceitável. Caso contrário, o agronegócio brasileiro pode ter ainda uma estória como a da Enron para contar...   

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Os donos da comida: os barões dos grãos




     Havia um tempo em que todos falavam nas 7 irmãs do petróleo com temor e reverência. Quem fazia política energética sabia que não adiantava pensar em estratégia para o setor sem levar o conta o interesse dessas multinacionais que controlavam extração e distribuição do produto. Quem ousasse planejar uma alternativa que  não fosse do interesse de uma destas gigantes como Exxon, Shell, Texaco etc. estava fadado a ser destituído ou ter seus planos frustrados. Meios para fazer valer seu poder havia de sobra. Hoje, porém, - passadas décadas -  após muita luta, muita reviravolta no setor, e muitos altos e baixos no mercado da commodity, o Financial Times chegou a conclusão de que quem manda no petróleo no mundo são empresas como a Petrobrás, e suas assemelhadas.
        
      Relembro a distribuição de poder na indústria petrolífera para traçar um paralelo com o comércio de grãos no mundo. Os grãos são a base do agronegócio: é o trigo para o pão, macarrão, biscoitos, é o milho e a soja que alimentam animais e se transformam em leite, queijos, manteiga, frango, bife de boi, hambúrguer presunto, linguiça, e o arroz que alimenta diretamente as pessoas, são as oleaginosas que se tranformam em óleos e margarinas. Enfim, quem controla os grãos, controla a comida no mundo. E nesse caso, o dos grãos, ao contrário do petróleo, é ainda um pequeno número de multinacionais - que poderia ser chamado de cinco irmãs - que detêm o poder.
     
      Cargill, Bunge, ADM (Archer-Daniels-Midland), Louis Dreyfus e George André Company são os nomes dessas empresas que possuem nos países produtores de grãos estruturas de secagem e recebimento. São elas que que recebem o produto e pagam ao produtor - o que se chama originação. São elas que contratam transporte até os portos, armazenam e fretam navios para chegar aos grandes mercados da Ásia e Europa. São elas que controlam o processamento de óleos, farelos, farinhas, margarinas e outros produtos base da indústria de alimentos. Enfim, como dizia uma propaganda de uma delas: "do produtor até a sua mesa".
     
      Qualquer policy maker que se arrisque a fazer políticas públicas que afete o comércio de grãos deve levar o conta o poder dessas empresas. São oligopólio e oligopsônio: podem captar todo "excedente" de preço existente entre produtor rural e consumidor. Muitas vezes sua orientação pode coincidir com interesses brasileiros: no caso da entrada da China na OMC, uma delas fez um forte trabalho para pressionar a abertura do mercado de grãos chinês ao mundo, o que beneficiou nossas exportações. Entretanto, aqui ao lado, na Argentina, uma delas sempre lutou contra qualquer tentativa de construir agregação de valor à revelia de seus interesses, e chegou a nomear e demitir ministros da fazenda!
        
      No longo prazo, talvez seja interessante à países como Brasil e Argentina ter campeões nacionais na área, como temos hoje no caso das carnes. Não que não haja empresa brasileiras no setor: poderia citar Caramurú e André Maggi como players independentes, mas que não atuam de forma completamente autônoma, e de certa forma dependem de uma dessas cinco para efetivarem seus negócios. Uma tentativa de ameaçar o domínio das cinco veio da entrante Agrenco, que amargou uma série de dificuldades, faliu e tenta desesperadamente se recuperar. Bater de frente, talvez, não seja o melhor, mas ir construindo autonomia progressiva, com certeza, favorece os interesses do país. Uma riqueza que para nós é tão grande como o petróleo não pode ficar completamente alheia às decisões nacionais.
             
         Para quem quiser saber mais sobre o assunto recomendo um clássico, dos anos 70, mas que em boa medida continua atual, sobre o assunto: Merchants of Grain, de Dan Morgan. Apesar de escrito para tentar explicar porque o governo dos EUA, nos anos 70, não conseguia fazer um embargo efetivo ao abastecimento de grãos dos países capitalistas à URSS, a obra mostrou, com riqueza de detalhes, como se formaram esses conglomerados mundiais e seu modus operandi nos mais diversos mercados. Vale a pena ler para entender. Só conhecendo o cenário onde é implantado é que se pode fazer uma avaliação de uma determinada política. E no caso dos grãos são essas grandes tradings que controlam o setor.



PS: O livro inclusive me aguçou uma curiosidade: como funcionou a COBEC - trading do Banco do Brasil para alavancar exportações brasileiras, e porque ela foi encerrada: ainda vou pesquisar mais sobre o assunto (agradeço referências - de livros e pessoas - que por acaso possam me recomendar!).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O estrume e a porcaria





            A globalização está transformando o Brasil num fornecedor mundial de carnes. Entre elas está a carne de porco. Ela vem de criações intensivas. Aproveitam a abundância de soja e milho que a modernização da agricultura brasileira proporciona. Ser intensivo, porém, não cria só economias de escala, mas também faz aparecer uma concentração de problemas. No caso das granjas de suínos – que garantem o nosso presunto e lingüiça de cada dia – o problema tem nome: uma grande montanha de esterco.

            Em Santa Catarina, há cidades no oeste do Estado nas quais a água é intragável. A poluição é concentrada e atinge os rios. Mas calma leitor, antes de atirar pedras, lembro-lhe que essas pequenas cidades são beneficiadas pelos empregos, pela renda e pelos impostos que movimentam as economias locais. Há grandes áreas com florestas mantidas em pé nessa região devido à renda per capita satisfatória que inibe a dilapidação de matas em busca de outros meios de sustento. Ademais o IDH alcançado por essas cidades é respeitável.

            Como então equacionar o problema? Como produzir porcos sem poluir os rios e o lençol freático? Típico caso em que são necessárias políticas públicas para regular o conflito entre duas preocupações legítimas: desenvolvimento econômico e qualidade ambiental. Nesse caso, a regulação esteve ausente por muito tempo: não havia necessidade alguma de licenciamento para se tocar uma granja, o que seria uma etapa inicial necessária a qualquer controle.

            A situação parece estar evoluindo. Alguns estados importantes já possuem um procedimento licenciatório para produção de porcos. Estudo do Dr. Júlio Palhares , pesquisador da Embrapa, mostra, porém, que Estados importantes como São Paulo, Mato Grosso e Goiás não começaram a licenciar a atividade. É um sinal de alerta. Esse interessante estudo mostra também as tendências para equalizar o conflito e criar bases para procedimentos ambientais para a instalação de granjas.

            Uma das medidas interessantes para amenizar o problema é a instalação de biodigestores que produzem gás metano. Biocombustível à base de esterco. Muitas granjas já instalaram o sistema e usam a energia para seu próprio consumo. O que sobra da reação pode ser utilizado como adubo na produção de grãos e beneficiar a própria região. Parece uma nova versão do Mad Max onde o suinocultor é o moderno Master Blaster!




            Embora interessante, útil e muito alardeada pela imprensa, a instalação de biodigestores não é suficiente para conter os efeitos da aglomeração de porcos. Somente a regulação devida do tema pode manter a indústria de suínos sustentável ao longo do tempo. Como alerta o estudo do Dr. Palhares, se não houver normatização a competitividade dessa cadeia produtiva pode estar seriamente ameaçada. Sem dúvida a compatibilização de políticas públicas, problemas ambientais podem transformar a agropecuária numa grande porcaria!

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sisbov: um tiro na rastreabilidade?

  
  
       
  
    Quando estourou a crise da vaca louca os consumidores europeus ficaram assustados. Costumavam confiar no seu sistema de produção. Depois da crise exigiram rastreabilidade. Queriam saber de onde vinha seu alimento. As autoridades sanitárias da União Européia aproveitaram o momento - uma janela de oportunidade, como dizia Kingdon - e implementaram a rastreabilidade para monitarar e evitar a dispersão de epidemias em animais.


    No Brasil, os técnicos da inspeção veterinária desconfiaram que as exigências de rastreabilidade européias chegariam às carnes importadas, inclusive as brasileiras. No momento em que a vaca louca explodiu nos EUA, aquele país que era o maior exportador perdeu muitas vendas e assumimos seu lugar. Precisávamos garantir o aumento das vendas. Além disso, havia veterinários experientes que sabiam que haviamos importado muito gado europeu (matrizes e reprodutores), e seria importante saber onde atuar se a vaca louca se manifestasse nestes animais. Nesse contexto foi criado o Sisbov: o sistema de rastreabilidade do boi brasileiro.
     
      Entretanto, as fazendas de bovinos de corte no Brasil não servem só para produzir carne. Quem nunca tinha ouvido falar que boi servia para lavar dinheiro e acobertar operações duvidosas pôde ter uma idéia de seu potencial no chamado Renangate. Como há grandes diferenças de produtividade, muitos pecuaristas também se aproveitam dessa brecha para pagar menos imposto, declarando menos vendas do que as efetivamente realizadas. Ao contrário da produção de suínos e aves, nos bois tem muita gente que a usa a atividade para outros fins, se não ilícitos, no mínimo duvidosos.
     
    Sonegadores e pessoas ligadas a lavagem de dinheiro começaram a se assustar quando perceberam que o sisbov logo seria universal e obrigatório para todos. Ora, se todos os bois tivessem um brinco único, rastreável desde o nascimento até o abate, a Receita poderia, com o tempo, usar tal base de dados para prevenir sonegação, e a Polícia, o Ministério Público, e Coaf poderiam investigar lavagem de dinheiro. Entre outros conflitos, se formava uma incompatibilidade entre o acesso ao mercado de carne europeu e defesa veterinária versus o uso de gado para encobrir ilícitos.
     
     Na produção de bovinos de corte no Brasil a maior parte da carne vai para o mercado nacional. Anos atrás a exportação era irrelevante, hoje embora respeitável não chega a rivalizar com o consumo interno. O peso dos interesses se dá aí: quem sonega ou lava dinheiro tinha muito a perder; os que produziam para exportação eram poucos, e tinham outros mercados além da Europa. Estava selada a silenciosa frente contra o Sisbov. Gente preocupada com o que estava em jogo começou uma discreta campanha para desacreditar o sistema. A Abiec, que representa os exportadores, ou não percebeu essa campanha ou não teve força suficiente para fazer frente a ela. 
     
     Verdade é que implantar um modelo de rastreabilidade como o Sisbov é uma tarefa complexa. Foram necessárias muitas mudanças. Algumas sugeridas por técnicos para refinar o controle. Outras pressionadas pelo lado de fora para afrouxar as regras. Nesse vai e vêm, equipe de auditoria da União Européia tinha aceito o modelo proposto. Quando voltaram noutra vez perceberam que ele tinha deixado de ser focado na sanidade, e resolveram então apertar o cerco. Começaram as crises. Nesse panorama o lobby anti-Sisbov pôde usar a instabilidade para colocar os pecuaristas contra o sistema. Disseram que as exigências da UE eram descabidas e que rastrear era caro.
      
       Alguns parlamentares da bancada ruralista tiveram papel importante em descaracterizar o Sisbov. Com certeza parte de seus apoiadores insistiram para obstar a rastreabilidade, outra parte -  que estava mais distante do debate - comprou a versão daqueles que seriam prejudicados, algo que poderia ser explicado pela chamada lei de ferro das oligarquias de Michels. O evento crucial foi o chamado "embargo" da União Européia que se deu quando inspetores europeus perceberam que as flexibilizações tinham ido longe demais. A partir daí, parlamentares tiveram a brecha que precisavam para legislar e enterrar a rastreabilidade, ironicamente agravando os problemas apontados pela UE.
      
     Oficialmente, com a nova Lei 12.097, de 2009, o sisbov foi aperfeiçoado. Porém, a análise atenta do documento por técnicos do setor leva a concluir que a rastreabilidade foi enterrada de vez. Até marca a fogo está valendo agora no lugar dos brincos com chip eletrônico. E só será conhecido o paradeiro do boi nos seus últimos 90 dias de vida, isso numa média de vida de 3 anos. Infelizmente o corpo de veterinários responsável pela rastreabilidade não poderá fazer com muito com um arcabouço legal destes. Parece ser o tiro de misercórdia na rastreabilidade: o abate do sisbov. Esperemos a nova visita de inspetores europeus: estamos curiosos para saber o que farão os grandes frigoríficos com os cortes traseiros depois da provável suspensão que nos ronda. Melhor teria sido se os pecuaristas competentes - que devem ser a maioria silenciosa - tivessem se unido contra esse retrocesso.